Ao Mestre com Carinho III

Carlos Tamanini

Na Faculdade de Artes Dulcina de Moraes, onde me graduei em Artes Cênicas, fui aluno de Carlos Tamanini [1], com quem estudei três anos o método das Ações Físicas. Ele me ensinou a entender o teatro; a dissecar o espetáculo em partes e dar nome a cada uma delas; a ler e compreender o fenômeno teatral; entender os mecanismos de seu funcionamento; como analisar uma peça de teatro quando ela se mostrava eficiente e também quando não funcionava; ensinou a pensar o teatro.

A minha iniciação no estudo formal das artes cômicas começou paralelamente ao meu último ano de formação acadêmica. Fora da faculdade, Carlos Tamanini iniciou uma turma de alunos interessados na arte dos palhaços. Durante alguns meses fomos treinados a dar saltos, virar piruetas, cair de grandes alturas e do próprio chão, receber e dar bofetadas, abrir e fechar portas que não existiam, empurrar paredes invisíveis, carregar caixas imaginárias de tamanhos e pesos diferenciados, limpar balcões e colher flores em jardim imaginários. Eram às aulas de mímica. Tudo tinha de ser feito com muita verdade e eficiência. Para tudo havia uma técnica, um truque, o oposto das aulas de interpretação, onde os truques jamais eram permitidos. Nas aulas do curso de palhaços éramos levados a superar os nossos limites, a realizar coisas que julgávamos impossíveis de serem feitas com os nossos corpos. Depois de muito suor, pelos treinamentos físicos feitos em grupo ou individualmente, tínhamos que treinar a mímica, os truques e exercitar nossa criatividade, para alcançarmos o nosso jeito próprio de fazer as antigas e tradicionais gags de palhaços. Muitas vezes, quando exaustos perguntávamos o porquê de tamanho sacrifício ele respondia: "Não basta fazer, mesmo que façam muito bem. Cada um de vocês tem que alcançar um jeito próprio de fazer. Não adianta querer chegar a resultados, pensando em suas casas como fazer da melhor forma possível. Esse resultado se alcança fazendo. Vamos parar de falar e aproveitar os 10 minutos que restam. Voltem ao treino."

Ele explicava que muitas daquelas coisas que fazíamos principalmente os saltos, poderíamos nunca usar em nossas apresentações, mas era importante que o nosso corpo descobrisse do que ele é capaz; era preciso estar sempre preparado para o imprevisível, assim, quando fosse necessidade, teríamos capacidade de realizar improvisos que um corpo treinado é capaz de fazer. Ele não se referia às grandes proezas acrobáticas, falava de uma disponibilidade, mesmo que não consciente, para se permitir ir além do que somos capazes de imaginar ou julgar possível. Era um aprendizado do corpo e não do racional. Isso eu fui entender com o tempo, com as exigências que a prática do palhaço e do teatro foram me fazendo.

Era o ano de 1986, pouco se falava do “Teatro Antropológico” e das teorias de Eugênio Barba e seus colaboradores, mas na prática estávamos sendo submetidos a um treinamento que nos levaria a criar e conhecer uma outra possibilidade de utilização do nosso corpo, como atores. Um aprendizado para o qual não havia compreensão dentro da escola de teatro, porque gerava autonomia, e ampliava as possibilidades de uma segunda natureza corporal ou como bem definiu Eugênio Barba, uma “segunda colonização”.

Referindo-se ao treinamento, ele diz:

"Nosso uso social do corpo é necessariamente um produto de nossa cultura: o corpo foi aculturado e colonizado. Ele conhece somente os usos e as perspectivas para os quais foi educado. A fim de encontrar outros ele deve distanciar-se de seus modelos. Deve inevitavelmente ser dirigido para uma nova forma de ‘cultura’ e passar por uma nova ‘colonização’. É este caminho que faz com que os atores descubram sua própria vida, sua própria independência e sua própria eloqüência física.

Os exercícios de treinamento são esta ‘segunda colonização’. (...)" [2]

Hoje, sob a luz dos conceitos da Antropologia Teatral, vejo com grande clareza a importância do nosso treinamento de palhaço para alcançarmos o corpo cômico proposto na época. A criação de umespaçointerno onde se encontra possibilidades extracotidianas. Onde o corpo é treinado além de conceitos culturais ou rótulos e predefinições, onde se rompe com a sua própria natureza física para se alcançar a natureza da sua própria criação. Este espaço do vazio que se amplia, para gerar espaços de ocupação autentica.

José Regino

Brasília, ano de 2007 d.C.

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[1] Ator, Palhaço, Professor e Diretor de Teatro.

[2] BARBA, Eugênio e Nicola Savarese. A Arte Secreta do Ator, São Paulo, Editora Hucitec e UNICAMP, 1995, p 245.

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