Artigo O Silêncio que Antecede a Palavra
Artigo Núcleo Pesquisa, Projeto
“O SILÊNCIO QUE ANTECEDE A PALAVRA”
...apenas lhes peço que silenciem, para melhor compreender o debaixo das palavras. (Jacques Lecoq)
Há umas perguntas que sempre reincidem quando penso em comicidade: Qual a diferença de uma atuação cômica e não cômica? Qual o momento que define que a performance cômica vai ser um sucesso? Se eu fiz igual todos os dias, por que ontem não foi tão bom? ... Ops! Importantíssimo um esclarecimento: Não quero uma fórmula que se aplique a tudo ou a qualquer ideia e que, uma vez aplicada, seja capaz de gerar o Riso sob qualquer condição. Não quero a pedra filosofal da comicidade, que traz a resposta final. Não... Sou Palhaço, mas não sou louco. Quero apenas um caminho, uma trilha pela qual possamos olhar e entender o que funciona enquanto provocador do Riso. Quero uma ideia que, aplicada, favoreça a análise de uma performance cômica, levando a entender o que funciona como elemento provocador do Riso e o que não funciona. Não me satisfaço com as análises que colocam o mérito da boa performance cômica apenas no talento de quem a executa, ou seja, reduz a análise aos elogios. Tenho necessidade de entender quando alcanço, se alcanço o triunfo numa performance cômica ou quando a peia é inevitável.
Nessas minhas inquietudes, propus aos atores do meu Grupo de Teatro Celeiro das Antas um projeto de pesquisa que consistia em investigar o instante, o momento que antecede a ação cênica, que passamos a chamar de “O Silêncio Que Antecede a Palavra”. Investigar se existe uma conduta que, adotada, favoreça, no momento da execução de uma ação, o surgimento do Riso — qual seria essa conduta? E o grupo topou a parada. Ficamos cinco meses especulando essas sutilezas.
Pronto, agora estou aqui escrevendo na busca de registrar os caminhos e o resultado dessa investigação.
DEFININDO UM CAMINHO
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Propus ao grupo tomar como base a teoria do princípio do prazer definida por Freud em seu livro o Chiste e Sua Relação Com o Inconsciente. Esse livro eu utilizei como base para realizar a minha dissertação de mestrado O Desempenho do Ator na Construção do Riso – A dramaturgia de uma encenação cômica, defendida na Universidade de Brasília no ano de 2008.
Freud define como uma característica da mente humana a busca pelo prazer, atuando como mecanismo de defesa para evitar o desconforto e a dor. O ser humano desprende energia para se defender de qualquer situação em que se sinta ameaçado, fugindo de qualquer possibilidade de ser afetado pela dor e se proteger do desconforto. A esse desprendimento de energia ele chama despesa, que pode ser entendida como a energia psíquica gerada pelo indivíduo e dirigida a um determinado fim. Na recompensa dessas despesas, está o prazer, que se reflete em sensações físicas agradáveis.
Quando é efetuado o gasto dessa energia psíquica e ainda assim se tem uma economia, uma sobra dessa energia que não encontra onde ser gasta se converte em prazer cômico que é descarregado na forma do Riso: “... a origem do prazer cômico está na comparação da diferença entre duas despesas. O prazer cômico é o efeito pelo qual é conhecido — o Riso — só se manifestam se essa diferença não é utilizável e, pois, capaz de descarga.” (FREUD, 1996, p. 203). Assim, o Riso seria o efeito produzido pelo prazer cômico gerado pela economia da energia psíquica, que Freud chamou de despesa.
Cientes estávamos de que tudo que nós investigaríamos seria colocado à prova, no sentido de testar a sua eficiência dentro de contextos específicos, ao contrário da pesquisa científica, que necessita comprovação testada com certos rigores e critérios, para provar a eficiência. Ou seja, o objeto da pesquisa tem que ser submetido a um certo número de testes e alcançar na maioria das vezes o mesmo resultado. Exemplificando: As cordas para exercícios físicos ELASTIC foram submetidas 1200 vezes a uma carga de tensão equivalente a 100 kg e elas não romperam, o que permite afirmar que essas cordas são adequadas para os exercícios físicos. Em se tratando de
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artes, basta testar a eficiência de uma conduta dentro de um contexto específico para poder traçar afirmações sobre ela.
NO PRINCÍPIO ERA O VERBO?...
Logo de cara, percebemos que a palavra à qual nos referíamos no título da nossa pesquisa necessariamente não se resumia à palavra falada, mas também à palavra pensada, ou seja, a palavra como ação, como uma ideia a ser comunicada, de forma oral ou como gesto. Esclarecendo: o gesto é qualquer movimento carregado de intenção, do mais sútil ao mais evidente.
Diga-se de passagem, sutileza se tornou uma palavra muito importante para o entendimento dessa nossa investigação.
Stanislavski já havia dito que tudo que passa na mente do indivíduo altera o seu corpo. Percebemos na prática da nossa pesquisa a veracidade dessa afirmação. Passamos a utilizar a meditação como uma ferramenta que nos habilitasse a perceber como os pensamentos surgem na nossa mente, como eles se instalam e se desenvolvem. Essa auto-observação facilita para que o ator tenha mais controle sobre os pensamentos, não ao ponto de evitar que eles surgem, mas de perceber que eles estão surgindo, evitar que eles se instalem e se desenvolvam, ocupando a mente e afetando o seu corpo.
Na primeira fase da pesquisa, investigamos os princípios que geram o Corpo Expressivo. Para isso fomos atrás de alcançar a neutralidade corporal, entendendo o Corpo Neutro como um corpo capaz de não expressar nada. Qual a lógica disso? Acreditávamos que, para alcançar um corpo não expressivo, teríamos que ampliar a consciência do que torna o nosso corpo expressivo, para, assim, de forma consciente, neutralizar momentaneamente esses elementos em nossos corpos. Foram algumas semanas de trabalho.
Na busca desse Corpo Neutro, chegamos inevitavelmente ao conceito do centro de energia que mantém e sustenta o corpo em ação. Esse centro é definido por muitos
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teóricos do movimento e do corpo — alguns o definem como centro de gravidade do corpo. Passamos a trabalhar com o Centro Imaginário do corpo, seguindo os conceitos de Michael Chekhov definido, em seu livro Para o Ator:
Imagine que existe dentro do seu peito um centro onde flui os impulsos para todos os seus movimentos. Pense nesse centro imaginário como uma fonte de atividade e de poder internos de seu corpo. Envie esse poder para a cabeça, braços, mãos, torso, pernas e pés. Deixe que a sensação de vigor, harmonia e bem- estar penetre seu corpo todo. Cuide que seus ombros, cotovelos, pulsos, quadris e joelhos não sustem o fluxo dessa energia que vem do centro imaginário, mas a deixam circular livremente. (CHEKHOV, 2003, p. 8)1
A utilização do centro de energia gera uma possibilidade de trabalhar com os movimentos cotidianos de forma mais consciente, ampliando as possibilidades de exploração de novos movimentos. O centro de energia gera uma sensação de que todo o nosso corpo está conectado, nada se move por acaso, e toda e qualquer alteração gerada no centro de energia altera as qualidades do movimento instantaneamente. Trabalhar com o foco de atenção voltado para o Centro de Energia nos dá a sensação de estarmos mais concentrados, com uma maior capacidade de dirigir a atenção para uma ideia, assunto ou tarefa em particular.
Nos dois primeiros meses, trabalhamos a busca da neutralidade manipulando o Centro de Energia. Percebemos que a exposição dos corpos em estado neutro durante um curto espaço de tempo coloca a plateia em estado de suspensão, interrompendo temporariamente o raciocínio que ela vinha desenvolvendo, criando uma expectativa que favorece a aceitação da plateia do que você tem a mostrar. O maior problema que encontramos foi a ansiedade de quem se põe diante da plateia. Na maioria das vezes, a pessoa acaba executando algum tipo de pequena ação, quebrando essa expectativa. Essa pequena ação pode ser uma simples tensão em alguma parte do corpo.
DEFININDO O MÍNIMO PARA IR AO ENCONTRO DA PLATEIA
1 CHEKHOV, Michael. Para o Ator. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
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Considerando que sairíamos a campo, para testar nossos experimentos diante de uma plateia, definimos como uma estrutura mínima de “cena ou ação cênica” o estabelecimento de contato — o desenvolvimento do contato — e o rompimento do contato. Percebemos nas nossas experimentações em sala de ensaio que é no estabelecimento do contato que surge o silêncio que antecede a palavra (palavra entendida como ação).
No estabelecimento do contato temos a possibilidade de criar na plateia um estado de disposição de ânimo para aceitar a proposta do intérprete. A primeira ação exige uma consciência do ator para que ele perceba para qual lado ele quer conduzir sua performance. O mínimo estabelecido é o ator deixar ser visto, se pôr diante da plateia e deixar que ela o observe sem esboçar um mínimo traço de intenção. Simplesmente deixar que a plateia o veja e imagina o que quiser. Essa ação é tão simples e potente que, na maioria das vezes, quando o ator sustenta o tempo, necessário a plateia já esboça os primeiros risos.
Percebemos no decorrer da pesquisa que esse estabelecimento de contato se repete no decorrer da performance como forma de reiniciar um assunto, iniciar um novo tema ou estabelecer novo foco de interesse. Importante salientar que essa renovação de estabelecimento de contato vai exigir essa estrutura mínima de desenvolvimento e rompimento todas as vezes que ela ocorrer. Se essa estrutura for negligenciada, pode provocar na plateia um desinteresse, um rompimento de contato, feito por ela às vezes de forma inconsciente, causando o abandono do artista pelo espectador no meio da sua performance. É quando a plateia pensa ou sente intuitivamente: isso não vai dar em nada. Afasta-se mentalmente da performance, deixando sua mente pensante passear por lugares mais agradáveis do que onde ela se encontra.
DEFININDO CRITÉRIOS PARA PESQUISA
Para essa pesquisa, precisamos definir critérios para levantamento de dados e posterior análise da ação performática. Optamos por usar os critérios estabelecidos pela Atriz, Palhaça e Pesquisadora Ana Flávia Garcia, utilizados nas suas pesquisas sobre Dramaturgia Aberta, e que ela veio aprimorando nos últimos anos.
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Um dos critérios foi a “noção de impacto pessoal”, que a pesquisadora Ana Flávia define como a consciência que o ator tem de como a sua imagem é recebida pelo espectador. Esse critério se tornou muito importante na pesquisa, pois a falta dessa consciência pode criar equívocos e levar o ator a se distanciar do objetivo geral da sua ação, dificultando o alcance do êxito na execução da sua performance. O contrário, a consciência do ator sobre o impacto que ele causa sobre sua plateia, dá a ele um lugar extremamente favorável para a condução da sua performance.
Outro critério a ser considerado é a forma como o ator aborda a sua plateia, como ele estabelece o contato inicial, abordagem por insinuação, abordagem por convite, por intimação, abordagem por exposição, abordagem por acolhimento.
Outro fator importante a ser considerado é o Nível de Contração que o ator exerce sobre a sua plateia, provocando nela atenção, interesse, envolvimento, participação e/ou comprometimento. O oposto também deve ser considerado, o Nível de Descontração, que causa dispersão e/ou desinteresse.
Em que nível o ator afeta a sua plateia, causando nela: riso, encantamento, reações emocionais, irreverência.
Esses critérios permitiram levantar dados e avaliar de forma mais segura o resultado das ações realizadas com a plateia e em sala de ensaio, em função da pesquisa.
TREINAMENTO — UMA ROTINA NECESSÁRIA Segundo Eugênio Barba:
Nosso uso social do corpo é necessariamente um produto de nossa cultura: o corpo foi aculturado e colonizado. Ele conhece somente os usos e as perspectivas para os quais foi educado. A fim de encontrar outros, ele deve distanciar-se de seus modelos. Deve inevitavelmente ser dirigido para uma nova forma de “cultura” e passar por uma nova “colonização”. É este caminho que faz com que os atores descubram sua própria vida, sua própria independência e sua própria eloquência física.
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Os exercícios de treinamento são esta “segunda colonização” (...) (BARBA, 1995, p. 245).2
Em função da pesquisa, e dando continuidade às práticas que o grupo realiza em função das suas montagens, reformulamos a nossa rotina de treinamento, buscando superar os limites estabelecidos pelo uso cotidiano do nosso corpo e pondo em xeque alguns elementos aos quais já estávamos habituados.
A nossa rotina de treinamento foi composta de prática de meditação. Durante cerca de 10 minutos, no mínimo, sentávamo-nos em posição de lótus e centrávamos a tensão na nossa respiração. Essa prática é conhecida como Anapana. Ela tem como função aquietar a mente, para que seja percebido como os pensamentos surgem e evitar que eles se instalem e se desenvolvam. Para tanto, devemos voltar a atenção para a respiração e observar o ar entrando e saindo da forma mais natural possível, ouvir todos os sons à nossa volta sem julgar ou classificá-los. Tudo que ocorrer ao seu redor e com o seu corpo é apenas para ampliar a sua consciência do aqui e agora. Com a prática, conseguimos ampliar os espaços de tempo entre os pensamentos que surgem de forma involuntária em nossa mente. Esse espaço vazio vai ganhando força e enfraquecendo os pensamentos que surgem de forma aleatória.
Em seguida partíamos para a prática física, que revezávamos entre exercícios de alongamentos, práticas aeróbicas, acrobacia de solo e dança espontânea. No total, eram, em média, 1h30 de prática física. Sempre com o objetivo de ampliar a nossa consciência corporal e aprimorar o nosso corpo físico, deixando-o pronto para agir e reagir a todos os estímulos internos e externos.
A segunda parte dos exercícios físicos era voltada para o trabalho expressivo. Com a consciência do Centro de Energia, conectávamos as extremidades do nosso corpo e todas as articulações, de forma que a mínima mudança no Centro de Energia alterava a qualidade dos movimentos. Ao instalar o Centro, passávamos
2 BARBA, Eugênio.; SAVARESE, Nicola. A Arte Secreta do Ator. São Paulo: Hucitec e UNICAMP, 1995.
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a realizar exercícios cotidianos, arrastar, empurrar, carregar, arremessar objetos imaginários de tamanhos e pesos variados, sentar, levantar, variando tempo, ritmo, velocidade e peso. Como essa rotina era sempre executada em conexão ao Centro de Energia imaginário, pudemos perceber que o movimento alterava as qualidades do Centro de Energia da mesma forma que as mudanças de tamanho, cor, temperatura alteravam os movimentos. O deslocamento do Centro no corpo alterava-o de forma direta, gerando outras sensações psicofísicas. No grupo já usávamos o Centro Imaginário como forma de criar corpos para as personagens dos nossos espetáculos, mas agora passamos a utilizar o Centro de Energia para trabalhar com o nosso corpo cotidiano, para, a partir dele, alterar e manter as qualidades dos movimentos. Esses exercícios tinham como função ampliar a nossa capacidade de expressar nossas intenções, sentimentos e estabelecer a neutralidade física.
Num segundo momento da pesquisa, revisamos o nosso conceito de neutralidade, passamos a trabalhar com os vetores de energias provocados pelo Centro de Energia nos nossos corpos, trabalhando uma energia em oposição a esses vetores de força. A neutralidade passou a ser viva, dinâmica, ativa e não passiva, um estado controlado em nossos corpos. Logo descobriríamos que esse conceito e essa prática seriam fundamentais para a nossa pesquisa. Seriam referência para todo o material a ser pesquisado.
A terceira parte da nossa rotina era a criação de ações cênicas para experimento prático de como lidar com “O Silêncio Que Antecede a Palavra”. Entre as várias possibilidades vivenciadas, e lançando mão das experiências já adquiridas pelos atores do grupo em outros trabalhos e em Saídas de Palhaços, optamos por trabalhar na construção de Programas Performativos, um conceito desenvolvido pela Doutora e Performer Eleonora Fabião3:
3 Eleonora Fabião é atriz, performer e teórica da performance. Professora Adjunta do Curso de Direção Teatral da Escola de Comunicação—UFRJ, é Mestre em História Social da Cultura (PUC – RJ) e Doutora em Estudos da Performance (New York University – NY) com financiamento CAPES.
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Chamo as ações performativas programas, pois, neste momento, esta me parece a palavra mais apropriada para descrever um tipo de ação metodicamente calculada, conceitualmente polida, que em geral exige extrema tenacidade para ser levada a cabo, e que se aproxima do improvisacional exclusivamente na medida em que não será previamente ensaiada. Performar programas é fundamentalmente diferente de lançar-se em jogos improvisacionais. O performer não improvisa uma ideia: ele cria um programa e programa-se para realizá-lo (mesmo que seu programa seja pagar alguém para realizar ações concebidas por ele ou convidar espectadores para ativarem suas proposições). Ao agir seu programa, desprograma organismo e meio. (FABIÃO, 2009, p. 237)4
De todas as propostas apresentadas ao Grupo, essa nos pareceu a mais eficiente de todas, uma vez que ela dava suporte para os nossos critérios de avaliação e nos propiciava a nos colocarmos diante de uma plateia da forma mais próxima da experimentada em sala de treinamento. O Programa se difere essencialmente da cena por ele definir apenas três elementos necessários para a sua execução — O que vai acontecer? Onde vai acontecer? Quem vai executar? —, enquanto a cena teatral envolve mais duas outras questões — Quando está acontecendo? Por que está acontecendo? E para o estudo da cena todas essas questões são formuladas no passado, porque a história já aconteceu, e é na execução do espetáculo que ela vem para o presente. Já o Programa é uma proposição que vai ser executada, ainda não aconteceu, o que não quer dizer que todo o programa seja inédito, mas, uma vez executado, ele se torna memória e parte de um registro, não mais uma performance. Nesse ponto o teatro e a performance se assemelham, pois ambos só acontecem no aqui e agora, no momento da sua execução.
Para deixar mais claro, apresento um programa elaborado pela atriz Kelly Costty5 denominado Carta em Branco: A atriz, portando um envelope, aborda uma pessoa na rua, retira de dentro do envelope um papel em branco e pede para a pessoa ler a carta para ela. Esse programa foi executado em umas das saídas do Grupo para experimentação, e a reação das pessoas era as mais distintas. O que percebemos
4 “Performance e Teatro: Poéticas e políticas para uma cena contemporânea“, uma primeira versão deste texto foi escrita para o livro Cartografias do Ensino de Teatro (org.) Adilson Florentino e Narciso Telles, editora EDUFU (no prelo).
5 Atriz do Grupo de Teatro Celeiro das Antas, participou da pesquisa e registrou essa experiência no seu diário de bordo.
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foi que a maioria das pessoas lia as cartas que elas gostariam de ter recebido ou escrito.
O treinamento com o Impulso passou a ser utilizado como uma forma de canalizar e objetivar as nossas ações. Entendidos os impulsos dentro da proposta definida por Stanislavski:
Esses impulsos criadores são naturalmente seguidos de outros que levam à ação. Mas impulso ainda não é ação. O impulso é um ímpeto interior, um desejo ainda insatisfeito, enquanto a ação propriamente dita é uma satisfação, interior ou exterior, do desejo. O impulso pede a ação interior, e a ação interior exige, eventualmente, a ação exterior (STANISLAVSKI, 2003, p. 66).6
O impulso seria um fenômeno que ocorre no ator/performer, antecedendo a própria ação, levando-o a agir por uma necessidade ou razão não necessariamente racional, mas percebida e provocada pelas forças aglutinadas pelo impulso de agir. Um impulso gera uma ação, que gera um novo impulso, que consequentemente leva a outra ação, assim temos uma sequência de acontecimentos que vão revelando a intenção do performer e que foram gerados pelas suas ações, reveladas na execução do seu programa, que se relacionam pelas necessidades de se adaptar a cada nova situação, necessidades que se transformam em consequência das ações. O impulso se torna, assim, o catalisador de todos os elementos que habilitam o ator/performer a desenvolver o seu programa. Ele é em si o ponto de partida, “... o ponto principal não está na ação propriamente, mas na evocação natural de impulsos para agir.” (STANISLAVSKI, 2003, p. 268), e como consequência no ponto de chegada. Renovando o impulso, as ações parecem surgir de forma inesperada. Agindo assim, constatamos que os resultados da execução das ações ganhavam um grau de autenticidade, digamos até de espontaneidade, levando o ator/performer a “atuar com sinceridade, plenitude e integridade de propósitos” (Idem).
6 STANISLAVSKI, Constantin. A Criação de Um Papel. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.
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Percebemos também que, atuando a partir dos impulsos, o ator teria maior possibilidade de alcançar o seu êxito cômico, evitando voltar a sua atenção para aspectos dos procedimentos que provocam o Riso. Exatamente por não querer ser engraçado, ele tem mais possibilidade de ser. O Riso é um efeito produzido pelo prazer cômico, provocado por uma atuação convincente, espontânea e executada de uma forma inadvertida.
UM EXERCÍCIO DIVISOR DE ÁGUAS
Diante de todas essas situações, já na metade da nossa pesquisa, algo ainda não estava claro para nós. Qual era a diferença básica entre as atuações cômicas e não cômicas? Chegamos a realizar saídas divididas em dois momentos distintos. Num primeiro momento, saímos para realizar os nossos programas vestidos com os nossos Palhaços. Depois voltávamos sem os figurinos, com roupas comuns para realizar programas. Alguns programas com ou sem o figurino dos palhaços provocavam o Riso em quem assistia, outros não. Onde estava esse divisor de águas?
Um dia na sala de ensaio, propus ao grupo realizar um exercício que eu tinha vivenciado numa oficina do Lume. Pedi aos atores que escolhessem duas histórias reais, acontecidas com eles, uma que tivesse um caráter cômico e outra um caráter triste. Pedi que cada ator fosse à frente e contasse essas histórias, começando pela história triste. Quando eles estavam bem envolvidos nas emoções geradas pelas histórias, pediam que mudassem para a história cômica. Essa situação se repetiu por várias vezes com cada um dos atores. Em seguida, cada um anotava em seu diário de bordo o que acontecia internamente com eles, quando contavam cada história distinta. Nesse momento, utilizamos os elementos de avaliação para realizar os registros nos diários de bordo. Pedi que fossem claros e diretos nas anotações, evitando o uso de termos subjetivos, imprecisos ou genéricos. Esse foi o exercício que aprendi com o Lume, mas não necessariamente tendo feito o registro no diário de bordo.
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No dia seguinte, pedi que cada ator revisitasse suas anotações, discutimos o que havia em comum entre os registros e, para nossa surpresa, havia muitos aspectos comuns, mais do que imaginávamos. Afinamos os termos usados para definir as ações internas geradas durantes as performances cômicas e as tristes. Pedi que cada um fosse à frente e contasse as histórias, só que dessa vez eles iriam usar os procedimentos internos ocorridos durante a narrativa da história cômica para contar a história triste, e vice-versa. Era importante manter as histórias o mais próximo do que foi contado no dia anterior. O resultado foi surpreendente, passamos a rir do que antes nos fazia chorar, e a nos emocionar com o que antes nos fazia rir.
Com esse exercício pudemos perceber, na prática, o que muitos mestres da palhaçaria já havia nos dito: que o humor não está no que se faz, mas no como se faz. Isso ficou evidente. A Presença Cômica passou a ser vista de uma outra forma pelos atores pesquisadores. Mas... e quais foram esses elementos percebidos no corpo dos atores?
Constatamos que, ao contar uma história alegre, o corpo dos atores era tomado por um estado de prontidão, as tensões se diluíam, mostrando um corpo mais relaxado e ativo; o corpo reverberava de maneira igual sem tensões. A respiração era leve, tinha um ritmo próprio; a respiração trazia relaxamento para o corpo e para o ambiente. O Centro de Energia se tornava solar, dilatado, reverberando por todo o corpo, provocando um desejo de compartilhar, tirar partido de todas as situações, revelando para plateia uma pessoa eufórica, brincalhona, entregue à situação do momento, vivendo no aqui e agora, com pensamentos rápidos, uma pessoa ativa, com um olhar sempre a buscar a plateia e carregado de luz. Uma presença solar.
As histórias tristes afetavam o corpo do ator, tornando-o recolhido, tensionado, acanhado, com os ombros caídos. A respiração se mostrava densa e pesada, em alguns momentos parecia ser suspensa e, por mais profunda, não chegava a relaxar o corpo. O Centro de Energia se tornava sombrio, reverberando por todo o corpo, provocando um desejo de autoproteção e recolhimento; revelando para
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plateia uma pessoa introspectiva, com uma voz num tom mais baixo, um tom fúnebre, com pensamentos ponderados — pensa muito antes de falar, parece que está o tempo todo evitando a dor; uma pessoa passiva, que vive no passado, com um olhar que evita a plateia, um olhar perdido voltado para o chão. Uma presença soturna.
Perceber esses elementos com clareza para todos nós, foi muito revelador. Por muito tempo os atores pareciam crianças se divertindo com um novo brinquedo. Manipulavam os seus corpos como uma facilidade. Aquietavam suas emoções, despertavam furacões internos, pela sala de ensaio, surgiam Pucks, Oberons e Fadas, Riobaldos revoltados, Hamlets vingadores, Marias Bonitas apaixonadas. Os atores iam além dos seus estados, criavam corpos carregados de emoções, corpos que transitavam rapidamente entre uma emoção e outra.
Sim! Ops..., mas essa é a função do ator bem treinado. Isso não tem nada de novidade. Ainda mais os atores do Celeiro, que têm formação acadêmica e seguem nos estudos e na prática. Que divisor de águas foi esse? Qual foi esse pulo do gato?
Os elementos citados acima não necessariamente precisam ser utilizados como um conjunto. Percebemos que bastava o uso de um elemento de forma consciente para que todo o processo se desencadeasse. Exemplificando: o ator pode acessar todos os elementos utilizando a respiração como um gatilho que dispara e desencadeia um corpo, que põem em funcionamento um centro de energia que modela um corpo, dando forma ao que vem a ser transformado em uma personagem. Ou, ainda, o ator acessa o seu Centro de Energia imaginário, deixando que ele faça todo o trabalho.
Na prática, o corpo é disponibilizado de forma consciente para o ator, pelo treinamento da neutralidade. Consciente de todos os elementos que tornam o corpo expressivo, o ator pode se neutralizar. A partir desse estado zero, ele tem várias formas para desencadear um corpo cênico. E é nesse instante de tempo, nos segundos que antecedem a palavra, com o corpo ainda mudo, que ele mostra a que veio, ou melhor, que o ator decide para onde ele quer que o corpo vá.
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Jacques Lecoq chama atenção para o silêncio nas relações humanas:
Em todas as relações humanas, aparecem duas grandes zonas silenciosas: antes e depois da palavra. Antes ainda não falamos, encontramo-nos em um estado de pudor, que permite à palavra nascer do silêncio, a ser mais forte, portanto, evitando discurso, o explicativo. O trabalho sobre a natureza humana, nessas situações silenciosas, permite encontrar os momentos em que a palavra ainda não existe. O outro silêncio é o do depois, quando não há mais nada a dizer. Este nos interessa menos! (LECOQ, 2010, p.60 )7
Esse silêncio que antecede a palavra, que percebemos na prática durante nossa pesquisa, se mostra em toda a sua potência como algo que existe para ser rompido, que nasce para deixar de existir, sendo rompido e sendo preenchido pela palavra pronunciada ou pela palavra pensada impregnada no gesto. E poder ir além da palavra, dando a ela uma intenção. Deixar a palavra/gesto ser contaminada na origem, rompendo o silêncio, despertando na plateia risos ou lágrimas. Saber que a alegria e a tristeza, por mais antagônicos que se revelem, têm a mesma origem: o vazio, o silêncio, o nada.
Poder definir no momento presente, no instante que se instala a performance, para que lado ela vai seguir. Ciente das condutas e procedimentos que envolve a realização da cena, deixar que o corpo se mostre totalmente contaminado por cores, textura, temperatura, deformando-se ou sendo reorganizado por um Centro de Energia imaginário conectado com todo o corpo. Bastando apenas o ator respirar de forma consciente, fazendo a vida surgir primeiro no corpo dele, para depois ir contaminando o ambiente, compondo as atmosferas que ele escolher, alcançando as pessoas que se proponham a assisti-lo naquele instante.
Tudo isso pode não ser novidade para muitas pessoas, mas para nós foi muito revelador. Perceber que é quando você não se põe a fazer, quando não se entrega a ação, mas quando você se propõe ao vazio do instante, ao momento zero, ao nada; é exatamente aí que está a potência geradora do que pode surgir de forma clara e convincente. Parafraseando Stanislavski, assim como um músico que treina para tocar o seu violino aprende todos as notas e experimenta várias melodias,
7 LECOQ, Jacques. O Corpo Poético – Uma pedagogia da criação Teatral. São Paulo: Editora Senac, 2010.)
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para, quando estiver diante da plateia, decidir qual a peça ele quer executar e de que forma ele a quer executar, ou se ele quer apenas improvisar. Deixar fluir uma música única que jamais será executada novamente. Foi essa a liberdade que sentimos com o decorrer dessa pesquisa, quando descobrimos o silêncio que antecede a palavra.
Quanto aos procedimentos cômicos, passamos a vê-los como uma consequência do desenvolvimento do contato, como uma forma de manter a relação estabelecida. Percebemos a eficiência de procedimentos muito simples como o trabalho com o corpo dilatado, provocado a partir de um Centro de Energia imaginário que parece se exceder, ir um pouco além do que devia, gerando a imagem de um corpo que se encontra desajustado, descolado do seu lugar de origem. O que faz parecer que tudo que vem a surgir desse corpo não será adequado para superar esse desajuste. Qual o tamanho necessário para essa dilatação provocar o riso? O tamanho da sutileza. O tamanho que a plateia possa perceber e sinta como algo que só ela percebe, algo que acontece de forma inadvertida, sem reflexão, impensada.
Eu gosto de entender as coisas que eu faço. Viver de arte, para mim, nunca foi mergulhar em subjetividade. Sempre foi emergir dela para prática, como dar forma e vida para o que me provoca e me atormenta; como dar voz para as criaturas que povoam o meu dia a dia e a minha imaginação.
Brasília, 18 de maio de 2018.
Zé Regino Palhaço, Diretor de Teatro Coordenador da Pesquisa “O Silêncio Que Antecede a Palavra”
_____________________________________________________________________________________ Está pesquisa e a publicação desse artigo, foram realizadas com recursos do FAC (Fundo de Apoio a Cultura do Distrito Federal)
Realização:
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